18 de maio – Dia da Luta Antimanicomial
TODOS OS NOMES DA HISTÓRIA
Eu hoje sou muitos.
Como disse Nietzsche, em seus bilhetes da loucura: Sou todos os nomes da história.
Sou Friedrich Nietzsche: livre pensador de ímpar filosofia, atravessei a terrível experiência do hospício.
Sou Daniel Paul Schreber: defendendo com lógica delirante a minha causa, fiz suspender, à revelia dos psiquiatras do manicômio, a interdição judicial que abolia meus direitos civis.
Sou Sigmund Freud, leitor de Schreber: com ele aprendi que o delírio, problema insolúvel para a psiquiatria, pode ser, ao contrário, saída e solução.
Sou Vincent Van Gogh, o pintor louco, encantando olhares pelas formas e cores com as quais reinventei o mundo.
Sou Antonin Artaud, o dramaturgo: também internado em manicômios, denunciei a execrável arrogância de seus médicos-chefes na bela e contundente carta que lhes dirigi.
Sou Lima Barreto, o escritor: internado no antigo Hospício da Praia Vermelha, descrevi em meus livros a angústia e a solidão daquela sinistra prisão.
Sou Ernesto Nazareth: músico de formação erudita autor dos mais populares chorinhos, aos 71 anos fui trancado num manicômio, de onde fugi, preferindo a morte.
Sou Nise da Silveira, a primeira psiquiatra brasileira antimanicomial brasileira, repudiando o eletrochoque e dando entrada à arte no trato da dor.
Sou Arthur Bispo: confinado na Colônia Juliano Moreira por toda a vida, um manto que teci para encontrar Nossa Senhora levou minha obra a Venezas e bienais
Sou Raul Seixas, drogado, mas não dobrado – o mais beleza de todos os malucos beleza
Sou Michel Foucault, demonstrando o mecanismo estúpido do poder exercido pela razão sobre a loucura desde o nascimento do asilo.
Sou Franco Basaglia, vindo da Itália, a explodir Barbacenas e afins em terras mineiras, para nunca mais.
Sou Deleuze e sou Guattari, fazendo do AntiÉdipo máquina de guerra na afirmação das diferenças, contra as ciladas dos discursos psi.
Sou Jacques Lacan: tendo elaborado a mais rigorosa distinção entre neurose e psicose, cheguei afinal à conclusão de que deliramos todos.
Sou Estamira, força cósmica, estrela e atriz, fazendo brilhar a loucura nas telas do cinema brasileiro.
Sou Cézar Rodrigues Campos, o mais antimanicomial dos secretários de saúde, fundando, em Belo Horizonte, o sonho tornado real de uma cidade sem hospícios.
Sou Geraldo Francisco, brilhante e atrevido, o primeiro presidente da Associação de Usuários de Serviços de Saúde Mental de Belo Horizonte.
Sou Geraldo Peixoto, pai rebelado contra os manicômios que quase destruíram seu filho ao prometer-lhe falsamente a cura
Sou Eduardo Araújo, baiano arretado, enfrentando corajosamente os manicômios com as armas de um belo delírio e de uma louca paixão pela liberdade.
Sou Marcos Matraga, militante arrojado e amoroso poeta, na audaciosa vanguarda da luta antimanicomial.
Sou Rosimeire da Silva, doce e firme companheira, presente desde o primeiro momento na construção da rede de saúde mental de Belo Horizonte.
Sou todos estes, todas estas e sou outras e outros mais. Sou eu e sou vocês: somos mutantes, jurando que é melhor não ser um normal. Sou memória e sou projeto; sou os que já partiram, sou os que aqui se encontram; sou aqueles que virão. Sou todos os nomes da história da luta antimanicomial, a enlaçar-se com a história desta cidade, e de todas as cidades, países, povos, que, de cabeça erguida, lutam pela liberdade.
Por vezes pesadelos nos estremecem, a vocês e a mim, trazendo de volta muros opressivos, infindáveis corredores, quartos nus, geridos por carcereiros e carrascos. Nestes momentos, os tantos nomes que chamo me despertam para as pelejas que prosseguem, e para as festas que virão.
Manicômios, hospícios, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas, não passam de nomes para designar um único, triste e feio cárcere, como tristes e feios todos os cárceres são. Contra esta aridez, somos férteis; contra esta monotonia somos vários; contra este vazio somos vozes e canções.
“Neste mundo há várias formas de existir/ índia, preta, LGBTQI/ descendentes de Dandara e de Zumbi/ Cuiatãs e Marieles/ Curumins”, diz um samba-enredo dos nossos 18 de maio. Nós, os múltiplos, nós, os diferentes; eles, ontem e outrora, vocês e eu, agora e já, outros por vir – desde sempre derrubando prisões e abrindo espaços, anunciando: Todo manicômio cairá!
Texto performado no Centro de Convivência Carlos Prates na Conferência de Saúde Mental de BH em abril de 2022.